O mercado de quadrinhos teve uma nítida expansão em 2011. Os termômetros estão aí para quem quiser ver: a quantidade de títulos, as HQs escolhidas por planos governamentais de incentivo à leitura, autores nacionais lançando muito material e crescimento do espaço na mídia não especializada (ainda que esses veículos precisem se pautar melhor). Mas este ano houve outro fator que comprova esse crescimento: o número de eventos dedicados à arte sequencial.
Nunca o Brasil teve tantos eventos de quadrinhos num mesmo ano. Basta lembrar que, até 2009, praticamente só existia o FIQ, em Belo Horizonte. Hoje, as opções são variadas, em diversos estados. E o melhor: todos prometem novas edições.
O Brasil sediou até, e pela primeira vez, um evento focado exclusivamente no estudo teórico da nona arte. As Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos aconteceram de 23 a 26 de agosto, na USP, em São Paulo.
Este ano, estive em Curitiba, Florianópolis, Salvador, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Viajei sempre a convite dos organizadores (exceto pela Rio Comicon), para palestrar, mediar debates e, em geral, falar sobre o meu trabalho no Universo HQ e na Mauricio de Sousa Produções e o cenário atual do mercado de quadrinhos.
Mas, para que essa evolução não seja "fogo de palha", é preciso aparar algumas arestas, corrigir certos rumos, planejar melhor.
A começar pela criação de um calendário para esses eventos. Como mencionei num podcast com os colegas do Melhores do Mundo, em 2011 todos os festivais aconteceram no segundo semestre, em datas próximas. Isso dificultou a presença de autores independentes e pequenas editoras, que buscam essas "vitrines" para tornar seu trabalho mais conhecido; e profissionais, em virtude do excesso de viagens, que acaba atrasando a entrega de roteiros, desenhos etc.
Fiquei extremamente feliz por saber que os organizadores da Gibicon, em Curitiba, da Rio Comicon, no Rio de Janeiro, e do FIQ - Festival Internacional de Quadrinhos, de Belo Horizonte, se reuniram para coordenar agendas e trabalhar em conjunto. Ótimo, pois os eventos só têm a ganhar com isso.
Entendo, no entanto, que esse "pool" precisa encampar os eventos menores, realizados por fãs, como o HQCon, de Florianópolis, e o Multiverso Comicon, de Porto Alegre; e também o Fest Comix, que tem um foco muito mais comercial (por ser direcionado à venda de quadrinhos com descontos), mas também está expandindo suas atividades, trazendo autores para palestrar, realizando debates com profissionais, enfim, criando outras atrações para o público.
Se todos elaborarem um calendário conjunto, fica mais fácil também (e principalmente) para que os fãs possam programar viagens e encontrar seus autores favoritos.
Além disso, isso tende a facilitar o poder de barganha com as editoras, que, com raras e honrosas exceções, continuam ausentes dos eventos - inclusive dos principais do País. Essa postura lamentável precisa ser revista.
No mundo inteiro, os eventos de quadrinhos são o grande palco para as editoras anunciarem seus produtos e novidades. Basta ver a San Diego Comic-Con, nos Estados Unidos, e o Festival de Angoulême, na França.
É fundamental que as editoras e os organizadores de festivais estabeleçam uma convivência mais amigável, para que as duas partes, e especialmente o leitor, saiam ganhando.
Prós e contras de cada evento
Como estive em diversos eventos em 2011, em vez de matérias individuais, preferi fazer coberturas pelo Twitter e, agora, esta coluna, com um apanhado geral e as minhas impressões sobre cada um deles, pois suas características foram bem diferentes.
Local e data: Curitiba, de 15 a 17 de julho de 2011
Apoio governamental: sim
Patrocínio / Apoio de empresas: sim
Convidados: nacionais e estrangeiros
Cobrança de ingresso: não
Em sua edição "zero", pois a primeira será em 2012, para comemorar os 30 anos da Gibiteca de Curitiba, a primeira do País, o evento fez bonito. Teve convidados da Itália, França, Argentina, Alemanha e, claro, Brasil, belas exposições e uma intensa e variada programação de palestras e debates.
E o povo de Curitiba mostrou o quanto gosta de quadrinhos: praticamente todas as atividades tiveram casa cheia. Além disso, havia cartazes da Gibicon em vários pontos do centro da cidade e a cobertura da imprensa da capital paranaense foi bastante razoável.
O que precisa evoluir para as próximas edições é evitar que haja atividades em locais diferentes no mesmo horário. Muitos fãs lamentaram não poder acompanhar uma ou outra palestra por esta razão.
Também deveria ser estudada a filmagem de todas (e não apenas algumas, como ocorreu) as palestras e mesas-redondas, para disponibilizar esse conteúdo na internet.
Local e data: Florianópolis, 13 e 14 de agosto de 2011
Apoio governamental: não
Patrocínio / Apoio de empresas: sim
Convidados: nacionais
Cobrança de ingresso: sim
Fruto do trabalho de três fãs de quadrinhos, a HQCon teve como ponto forte em sua segunda edição a pluralidade em sua programação de palestras e debates, que não se restringia apenas à arte sequencial, mas também à literatura fantástica.
O evento aconteceu num dos andares do estacionamento de um grande shopping da capital catarinense e, apesar de a área ter sido bem isolada, em alguns momentos o som externo dos automóveis atrapalhou as atividades.
Mas o que mais prejudicou o evento foi a escolha da data, no final de semana do Dia dos Pais. Isso afastou boa parte do público e frustrou alguns autores e editores presentes. É algo a ser mais bem estudado daqui pra frente, juntamente com a inclusão de exposições e workshops na programação.
Todas as atividades foram filmadas, para serem disponibilizadas na internet, mas isso ainda não aconteceu. E a cobertura da imprensa catarinense deixou a desejar. Vale investir mais na divulgação e também convidar mais autores "da casa", que não foram lembrados, como o ótimo Samuel Casal.
Local e data: Porto Alegre, 17 e 18 de setembro de 2011
Apoio governamental: não
Patrocínio / Apoio de empresas: sim
Convidados: nacionais
Cobrança de ingresso: sim
Mais um evento que nasceu da vontade de fãs de levar os quadrinhos para a sua cidade - com a ajuda apenas do estúdio do desenhista gaúcho Daniel HDR. E, novamente, o ponto forte foram as palestras e debates, com convidados de diversos segmentos: desenhistas, editores e dubladores, que aconteceram no auditório de um colégio em Porto Alegre.
Infelizmente, também faltou analisar melhor o calendário, pois o evento aconteceu no final de semana da tradicionalíssima Revolução Farroupilha. Por isso (não que sirva de desculpa), a imprensa local deu pouquíssimo espaço ao Multiverso Comicon, mesmo contando com grandes nomes dos quadrinhos mundiais, como Ivan Reis e Eddy Barrows.
Vale destacar o empenho dos organizadores, pois o evento foi um dos únicos (ao lado do Festival Anual de Quadrinhos da Bahia) que pagou cachê aos convidados. E fica a dica para incluir na programação exposições de autores e convidar mais quadrinhistas locais - já que o Rio Grande do Sul é um celeiro de grandes nomes da arte sequencial brasileira.
Todas as palestras foram filmadas. Uma pena que não tenham sido disponibilizadas na internet.
Local e data: Salvador, de 6 a 9 de outubro de 2011
Apoio governamental: sim
Patrocínio / Apoio de empresas: sim
Convidados: nacionais
Cobrança de ingresso: não
A Bahia entrou no calendário dos quadrinhos levando vários grandes nomes do mercado nacional e apostando no conteúdo das palestras e nas oficinas com autores. O evento aconteceu em duas frentes: no auditório de uma livraria, dentro de um shopping em Salvador, e numa gibiteria local, aRV.
Como os dois locais não eram tão próximos e havia atividades concomitantes, isso dificultou a presença de público. A imprensa baiana deu mais destaque ao fato de Mauricio de Sousa, homenageado do festival, receber o título de cidadão soteropolitano do que propriamente ao evento. Uma pena.
Outro ponto a melhorar: todas as palestras na sede principal foram mediadas pela mesma pessoa, o autor Luis Augusto, da série Fala, menino!, que foi um dos organizadores do evento. Certamente, se a tarefa fosse dividida, o público sairia ganhando com a diversidade na condução.
Também faltou contemplar na programação bons nomes do quadrinho e do cartum baiano, como Hector Salas e Cau Gomez. E é preciso investir mais nas exposições - a que havia no festival, doSalão de Humor da Bahia, era muito fraca.
Local e data: São Paulo, de 14 a 16 de outubro de 2011
Apoio governamental: não
Patrocínio / Apoio de empresas: sim
Convidados: nacionais e estrangeiros
Cobrança de ingresso: sim
Para muitas pessoas, a Fest Comix nem deveria estar nesse rol, mas não há como negar que trata-se do evento que mais movimenta financeiramente o mercado de quadrinhos. São milhares de edições vendidas (com desconto) em três dias de longas filas, num colégio da capital paulista.
Com o objetivo de atenuar o foco comercial do evento, os organizadores estão introduzindo, ano a ano, uma programação de palestras para o público. Nesta 18ª edição, trouxeram autores de outros estados, como Mike Deodato Jr. (Paraíba) e Will Conrad (Minas Gerais), e até do exterior, caso do argentino Ariel Olivetti.
Além disso, houve bate-papos com editores, concorridas sessões de autógrafos com desenhistas de diversas gerações, camisetas e estandes de memorabilias, edições antigas etc.
No aspecto comercial, lamenta-se que, na maior feira de venda de quadrinhos do País, ainda falte material de algumas editoras - uma das ausências mais sentidas é a dos títulos da Abril.
Local e data: Rio de Janeiro, de 20 a 23 de outubro de 2011
Apoio governamental: não
Patrocínio / Apoio de empresas: sim
Convidados: nacionais e estrangeiros
Cobrança de ingresso: sim
Em sua segunda edição, a Rio Comicon teve como pontos altos as exposições do Spirit (simplesmente fantástica), com curadoria de Marisa Furtado, e de Valentina (cuja cenografia chamava tanta atenção quanto as artes de Guido Crepax) e a presença de muitos autores nacionais e estrangeiros. Merece elogios também o trabalho de divulgação, pois houve matérias em diversos veículos, inclusive no Jornal da Globo e no Jornal Nacional, daRede Globo. Nem mesmo o exagero (e erro) da reportagem deste último, que classificou o evento como o "maior do mundo", diminuiu a importância desse espaço, algo raramente conseguido por algo ligado a quadrinhos.
O evento, no entanto, carece de um espaço melhor que a Estação Leopoldina. Inclusive, ao final da primeira edição, a organização disse que procuraria outro local. Na antiga estação de trens, os autores independentes e editoras menores ficaram em áreas mais afastadas do "burburinho".
Ainda é possível evoluir nas exposições de autores nacionais, hoje plotadas, mas que ganhariam muito se fossem de artes originais; em filmar e disponibilizar na internet os ótimos debates e palestras; e em questões de organização, como o fato de a pessoa não poder sair do evento e retornar - especialmente porque diversos estandes não aceitavam cartões de crédito ou débito e não havia caixas eletrônicos no local.
O calendário também atrapalhou, pois a Rio Comicon aconteceu no final de semana do Enem, o que atrasou (ou impediu) a chegada de muita gente.
Local e data: Belo Horizonte, de 9 a 13 de novembro de 2011
Apoio governamental: sim
Patrocínio / Apoio de empresas: sim
Convidados: nacionais e estrangeiros
Cobrança de ingresso: não
Em sua sétima edição, o Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte se consagrou como o maior evento do Brasil. Durante cinco dias, passaram pelas dependências da Serraria Souza Pinto impressionantes 148 mil pessoas, também em virtude da grande divulgação na imprensa.
Além disso, o ótimo time de convidados nacionais e estrangeiros, a organização (muitos meses antes, partes da programação já eram anunciadas pela internet), as diversas exposições - com destaque para a magnífica Criando Quadrinhos, com curadoria de Ivan Costa - e as palestras, oficinas e avaliações de portfólios contribuíram para o êxito do FIQ. O clima era realmente contagiante.
Outro ponto alto foi a presença de autores independentes de diversos estados. Definitivamente, trata-se do mais nacional dos eventos brasileiros. E a distribuição do espaço fez com que os visitantes, numa volta completa pelo local, passassem por todos os estandes e mesas.
No entanto, o FIQ precisa investir numa área maior para as palestras e debates, e - assim como os demais eventos - pensar em maneiras de transmiti-los pela internet em tempo real, com ferramentas como Twitcam. E se a periodicidade fosse anual, ninguém reclamaria.
Agora é esperar que em 2012 os eventos já existentes se fortaleçam e os novos (já há outros estados cogitando-os) se estruturem para que não se limitem a apenas uma edição. Isso ajuda a diminuir o tacanho preconceito que, sim, ainda existe contra os quadrinhos, por parte de muitas pessoas e órgãos de imprensa, e a fortalecer o mercado como um todo.
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Sidney Gusman não esconde a sua alegria por ver tanta gente disseminando o bom vírus dos quadrinhos em eventos Brasil afora.
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